24 junho 2022

Artigo: Projeto de lei da criminalização do olhar e o direito penal da moral

 


É recente a notícia de que, no Senado, se apresentou projeto de lei que visa criminalizar "Olhares fixos e reiterados, com conotação sexual e de forma invasiva" [1]. Segundo a autora da proposta, senadora Rose de Freitas (MDB-ES), "[n]o Brasil, e em diversos outros países, também têm sido realizadas diversas campanhas para tentar coibir o assédio no transporte público. Nesse contexto, entendemos que o 'olhar invasivo', com conotação sexual, representa uma conduta que deve não ser somente proibida, mas principalmente criminalizada" [2].

A simples existência do PL 1.314/2022, acompanhada da justificativa apresentada para legitimar a "inovação jurídica", põe em evidência o contexto trágico em que o Direito e, perigosamente, o direito penal estão submersos.

O cenário atual, como já apontado em outra ocasião [3], demonstra que o direito penal está a ser deturpado de tal forma que nem mesmo poderia mais ostentar tal designação, tendo em conta que suas características principais, que o distinguem dos demais ramos da ciência jurídica, e seus aspectos mais relevantes têm sido completamente violados e, pior, por aqueles que deveriam "aprimorá-los" [4].

Já faz algum tempo que a lesão relevante aos bens jurídicos indispensáveis à convivência social não preocupa as reflexões jurídicas, o que afeta sobremaneira a utilização do direito penal para regulação de condutas e proteção das expectativas dos atores sociais. Nesse sentido, vê-se que a antecipação da tutela penal para momento anterior a qualquer lesão mínima virou regra. Os tipos de injusto, até no chamado "direito penal clássico ou nuclear", estão repletos de "elementos normativos" situacionais e genéricos, os quais acabam por subtrair da lei seu caráter comunicativo, ao ponto de deixarem completamente no marasmo o real alcance da norma incriminadora.

O elemento subjetivo do injusto acaba por não ser mais de quem pratica o crime. Relega-se ao intérprete o papel de dizer se houve ou não intenção. Pelo projeto e pela forma como se tem tratado questões desse jaez, a vítima se sente ofendida, instaura um processo, e o Judiciário é que tem de dizer se os olhares foram fixos; se fixos, se foram reiterados; se fixos e reiterados, se tiveram conotação sexual; se fixos, reiterados e com conotação sexual, se invasivos. Ao acusado, que está voltando a ser mero objeto da persecução penal, se lhe impõe verdadeira prova diabólica (prova do fato negativo), de impossível produção, "salvo se o sujeito ativo do malfadado crime for cego", hipótese em que, certamente, terá de recorrer ao instituto do crime impossível. Se estiver de óculos escuros, a dúvida quanto à materialidade do delito socorrerá o autor, exigindo-se sua absolvição. Se estrábico, o resultado não poderá ser diferente, pois não se conseguirá dizer com certeza razoável em qual real direção o autor direcionou sua libido através da retina. Seria cômico, se não fosse trágico.

Parte dessa inclinação malfazeja da ciência jurídica é tributária ao politicamente correto, que tem tolhido a autodeterminação das pessoas e se impregnou de tal maneira no pensamento mediano brasileiro que a única alternativa que resta é imitá-lo, sob pena de ser reconhecido como um demônio social.

Qualquer pessoa minimamente comprometida com o estudo sério do panorama social e suas causas chegará à conclusão de que uma proposta legislativa como essa não nasceu da reflexão séria e preocupada com a dignidade psicoemocional da mulher, mas da quimérica e tirânica ilusão de que estas sofrem, diuturnamente, sem quaisquer espaços consensuais, sem alternativas, sem exceção alguma, à opressão masculina, inclusive através de um "xaveco", e que o Estado, com o direito penal, deve protegê-la disso [5].

A professora Maria Lucia Karan, apesar de publicamente militar no espectro ideológico da esquerda brasileira, não passou ao largo do alerta quanto ao perigo de que a suposta defesa dos interesses de minorias ou grupos estigmatizados estava produzindo o efeito contrário, ou seja, a criminalização daqueles que queriam proteger, e colocava em dúvida a legitimidade das pretensões político-criminais do movimento. Definiu-a a jurista como "esquerda punitiva", em clássico artigo publicado nos idos de 1996 [6].

Haveria, com isso, uma espiral da repressão penal, em que somente a pobreza seria criminalizada, na transubstanciação do ditado popular "encarada de rico é flerte, de pobre é assédio".

Antes que se diga que esta expressão é preconceituosa, pois adjetiva de maneira estanque dois modelos sociais, sem excepcioná-los, ela, na verdade, reflete as diferenças de tratamento — tão denunciadas por estes mesmos que querem criminalizar a paquera — entre ricos e pobres na sociedade e no direito penal. Ou seja, trata-se de uma expressão que revela a realidade como ela é e não uma tentativa de imposição conceitual das ciências sociais para certa conjuntura do povo.

É preciso cuidado para que o direito penal não se ocupe do politicamente correto para definir condutas criminosas, consoante alerta do desembargador do Tribunal do Rio de Janeiro, André Andrade, achando que com isso se está protegendo alguém de uma ilusória ofensa [7].

O direito penal deve funcionar como elemento comunicativo/limitador entre o Estado e os cidadãos; além de preocupar-se em tutelar bens jurídicos com verdadeira dignidade penal, deve fazê-lo de forma certa, estrita, justamente porque, como defendido em outras oportunidades, o tem — deve ter — na linguagem estrita o limite do exercício constitucional, portanto legítimo, da competência sancionatória do Estado [8].

Conclui-se que não se trata apenas de um "erro dogmático", mas de uma cassação das estruturas político-criminais que têm se (de)formado de há muito. A liberdade, nas democracias do politicamente correto e sensibilidade exagerada de pessoas inseguras, está em risco. Sim, é o direto penal do risco, filho legítimo de toda a performance cultural que hoje se assiste.

 é advogado criminalista, especialista em Ciências Penais (Anhanguera-Uniderp), pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal (ABDCONST) e presidente da Abracrim-MA.

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